Laranjas descascadas
O tempo passa depressa demais, sem
nosso controle, por mais que tenhamos os olhos postos nos relógios, ou mesmo
que usemos outras formas de monitorar o tempo que passa veloz. Costumava dizer
aos meus alunos, que o tempo é um bem inelástico, e que não temos o poder de
voltarmos atrás para realizar algo que esquecemos, ou mesmo acrescentar mais
uma hora ao dia, porque ainda não acabamos as tarefas que desejávamos realizar.
Essa introdução é para dizer-lhes o
quanto valorizo o tempo hoje, certamente muito mais do que fiz no passado,
quando era bem mais novo. Às vésperas de fazer setenta anos – na verdade daqui
a cerca de cem dias – ainda penso em realizar alguns projetos, que foram
adiados enquanto o tempo passava, e eu realizava outros, ou apenas gastava o
tempo correndo atrás de uma melhor estabilidade financeira. Mas tudo bem, a
vida é assim mesmo, faz-se uma coisa, deixam-se outras para outro dia, ou outro
tempo. Como nos dia a Bíblia Sagrada (Ec. 3:1-8): “Tudo tem o seu tempo determinado,
e há tempo para todo o propósito debaixo do céu: (...)”.
Hoje, repito o gesto de meu saudoso
pai, descasco uma laranja após o almoço, às vezes também após o jantar, para
compartilhar com a minha rainha. Não é racionamento ou controle demasiado no consumo,
é de propósito, oportunidade de compartilharmos até mesmo a sobremesa, uma
forma de carinho.
Já adulto, no início dos anos 90,
costumava frequentar a casa de meus pais, que à época, morávamos no mesmo
prédio, no Méier. Algumas vezes, fiquei prestando atenção como o meu pai
descascava pacientemente uma laranja, retirando toda a pele que reveste o
fruto, para dividir com minha mãe. Outras vezes era uma laranja para cada um,
mas era ele quem descascava ambas. Não sei o quanto minha mãe valorizava esse
gesto, mas estou certo de que ele fazia isso como um gesto de carinho para ela.
Esse gesto me marcou a lembrança e, hoje, o faço com prazer redobrado, sempre me
lembrando dele, meu saudoso pai.
Existem gestos ou formas de se
expressar que as pessoas deixam na nossa vida. São marcas, identidades
incomparáveis, que o tempo não apaga. Quem não se lembra de amigos ou apenas
conhecidos de infância que, esquecemos os nomes, mas nos lembramos deles por um
cacoete, algo inusitado que falou num dia específico, de uma forma de gargalhar
exótica, de um jeito de cumprimentar, e por ai afora?
Deixamos marcas por onde passamos,
para o bem ou para o mal. Somos como as águas dos rios, levam um pouco do leito
e das margens, mas deixam um pouco delas por onde passa. Quantas pessoas
impactamos com a nossa presença? Quantas pessoas marcamos, de forma profunda,
com as nossas queixas, brigas ou gestos de pacificação? Ninguém passa nesta
vida sem deixar um tanto de si mesmo. E assim, com essa pequena história,
procuro destacar aquele gesto do Seu Rubens, como era conhecido, como marcou
minha vida e, ainda assim, deixou marcas que ainda repito, com muito prazer. Às
vésperas do dia de finados, só uma expressão para terminar: Saudades, meu pai.
01 Nov. 2019.