sábado, 19 de outubro de 2019


O Amigo da Onça
O papo entre amigos acontecia sempre ao fim de tarde, lá na birosca do Carlinho, bem no fim da rua daquele bairro, lá pros lados de Campo Grande, no Rio de Janeiro. A turma jogava dominó, sinuca ou ficava apenas no balcão bebericando e jogando um quilo de conversa fora. Num desses dias, o papo virou gastronômico, o que cada um gostava mais de comer, além do churrasco e de qualquer comidinha do tipo 0800. Rolou de rabada, mocotó, siri, moqueca capixaba, até angu à baiana. Tinha de tudo para todos os gostos. A cerveja e a pinga correndo soltos. Até que em dado momento, Tião, já aposentado da RFFSA, lembrou-se da infância e dos frangos e galinhas caipiras que sua mão e fazia aos finais de semana de aniversários na família. A boca encheu-se d’água, e os olhos de Tião ficaram marejados de saudades daquele tempo. Ele reclamou que os frangos branquelos de supermercados nada tinham a ver com aquelas gordas galinhas, suculentas, de coxas grossas, da sua infância. A riqueza de detalhes que Tião trouxe para o papo, de como a mãezinha dele matava, depenava, colhia o sangue para o molho pardo, deixou o Carlinho sem jeito, com aquelas coxas de frango cheias de catchup, na vitrine. Passado mais uma rodada de cerveja e da pinga da casa, que o Carlinho jurava que não era pinga batizada, o papo mudou para o futebol e ganhou outro rumo. Já noite alta, passava pouco das vinte e duas horas, o Carlinho deu sinais de que queria fechar a birosca, cansado e já preocupado com a segurança do bairro. A galera foi levantando e, cada um foi tomando seu rumo. Quem tinha uma “merreca” no bolso tratou de quitar sua parte, quem não tinha, e não eram poucos, penduraram mais uma no prego da birosca, e foram saindo, cada qual para seu lar. Manhã seguinte, o Tião levantou-se cedo para comprar o jornal O Dia, para ver a colocação do seu Botafogo na tabela do Brasileirão, e sobre os próximos jogos. Ia tranquilo pela ruazinha, despreocupado, quando na outra calçada, em sentido contrário, vinha de lá o Bira, com um saco de farinha de trigo nas costas e, de relance o Tião percebeu que algo se movia lá dentro do saco. Para sua surpresa, o Bira atravessou a rua na sua direção, parou, cumprimentou o Tião com um saudoso e sonoro bom dia, e foi logo dizendo:
- Irmão, isso é para você, ia levar agora mesmo na sua casa. Só te peço uma coisa, não comenta com ninguém que arranjei uma penosa para você. Sabe como é, depois aparece um montão de gente querendo moleza. Aproveita, mata a saudade das galinhas que sua mãe fazia. Fiquei pra lá de comovido com a sua história, mas boca fechada.
O Bira passou o saco de farinha com a penosa dentro, para as mãos do Tião, não sem antes recomendar novamente: Bico fechado, e mete o pé.
Tião fez uma meia volta e partiu direto para casa, não sem antes agradecer emocionado o Bira, que balançou a mão como se dissesse: deixa pra lá. Assim que Tião entrou em casa, a mulher dele já foi logo falando: - Ué, já voltou? Tu nunca volta antes das dez. O que que tem nesse saco? Sem demora o Tião colocou o dedo indicador na boca e fez o sinal de bico calado. A mulher dele estranhou, mas seguiu o Tião até a cozinha e, quando abriram o saco de farinha, como por um milagre dos céus, eis que lá estava uma gorda galinha branca, toda ressabiada, vivinha e pronta para o abate. A mulher de Tião colocou as duas mãos na cintura e falou: - Ô Tião, onde você arrumou essa galinha, homem? Tião disse que foi um presente. Presente de um amigo, o Bira, lá da turma da Birosca do Carlinho. Presente? Tu não tá de aniversário. Que história é essa? Tião, sem demora advertiu a mulher para ficar de bico calado, que foi recomendação do Bira, para a turma não ficar pedindo nada pra ele. Tudo bem, pensou a mulher, mesmo assim meio desconfiada. E foram para os trabalhos, matar a gorda galinha do presente. Para não alertar os vizinhos o Tião, mesmo com pena da penosa, deu-lhe uma torcida esperta no pescoço da cuja, e a pobre ave passou desta para aquela situação de abatida. Depois de escaldada e depenada, o resto foi moleza, temperos, fogão e esperar a hora de saborear a gordinha de penas, lembrando-se da mãezinha e da infância, com os olhos marejados, mas um sorriso de orelha a orelha. A vontade deles era tanta, que a metade dela foi no almoço, o restante na janta, com direito de roer os pés da penosa. Acabado o jantar, como sempre fazia, Tião foi se saindo para encontrar a turma lá na Birosca do Carlinho. Foi chegando perto da turma e percebendo que havia um clima sinistro no ar. Papo baixinho, um olhando para o outro e, Tião já ficou ressabiado. – Ué, que que houve por aqui galera, alguém morreu? – perguntou o Tião. Morreu sim, disse o Carlinho colocando a cerveja do Tião. – Quem morreu, gente? - insistiu o Tião. Carlinhos continuou: Bem, acho que morreu, não temos certeza, mas a galinha de raça do Paulão, aquele da estiva, que cria umas galinhas lá no quintal dele, disse que desapareceu, não deixou nem uma pena para trás. Ele reclamou que era sua melhor ave. Tinham outras galinhas, mas sumiu exatamente a melhor delas. Ele acha que alguém passou a mão leve por lá, mas disse que vai descobrir, custe o que custar. Tião engoliu seco, tossiu, passou a mão disfarçada na boca, para ver se não tinha nenhum vestígio da penosa e, num gole só tomou o copo todo da cerva. O Carlinho estranhou o gesto e comentou: - Cara, tu tava seco, é? Se controlando o Tião rebateu: - Muito chato uma parada dessa. Vai ver a penosa se mandou com algum galo. Ou sei lá, um gambá pegou ela de jeito, ou então um gavião faminto, sabe como é, a coisa não tá boa nem para o mundo animal. Carlinho coçou o queixo, como se pensasse nas ideias do Tião: - É gamba pode ser. Mas cadê as penas? Não tinha pena nenhuma no galinheiro. A galinha se entregou sem brigar? Estranho. Fugir com o galo? O galo está lá, triste e nem cantou hoje de manhã. E gavião à noite, nunca ouvi falar. Tião sentiu que suas ideias não estavam colando muito bem, e arrematou: - Sei lá gente, é apenas uma ideia. De qualquer forma o jogo de sinuca e o dominó não rolou como sempre. Ficou aquele papo meio sinistro se isso ou aquilo, o que faria o Paulão se soubesse que alguém da rua tivesse, por acaso, afanado a galinha dele. Tião sentiu aquele friozinho na espinha, e deixou de dar ideias, para que ninguém desconfiasse que em sua barriga já descessem partes daquela ave adorada por outrem. Neste dia o Carlinho nem precisou dar um toque na turma para fecharem as contas, que ele queria fechar para assistir o jogo do seu mengão em paz. Todos foram saindo, despedindo-se em voz baixa, como se saíssem de um velório mesmo. Tião chegou em casa, chamou a mulher no quarto, e falou baixo: - Mulher, arruma as malas, amanhã de manhã vamos passar uns dias lá na casa de sua mãe em Madureira. A mulher de Tião levou um susto. – Ué, que foi viu assombração? Você não gosta da mamãe, nem gosta de ir lá, quanto mais passar uns dias por lá. O que que houve, conta essa história? – Não houve nada, mulher. É crise de consciência, pensei bem hoje, você fica sozinha, com saudades de sua mãe e a gente quase não vai lá, e a culpa é minha. Não discuta, é para o bem da família, ficamos lá uns cinco dias, e pronto, ela não vai reclamar mais que a gente não vai lá. A mulher de Tião engoliu, mais ou menos a história, e abriu um sorrisão daqueles, que bom passar uns dias na casa da mamãe. Cinco e meia da manhã, nem o sol tinha acordado, e o Tião já tirava a Vemaguete 67 da garagem, para se mandar para a casa da sogra, torcendo para ninguém vê-lo saindo, muito menos o Paulão, o dono da penosa.
12 set. 2019.

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