O Amigo da Onça
O papo entre amigos acontecia sempre ao fim de tarde, lá na birosca do
Carlinho, bem no fim da rua daquele bairro, lá pros lados de Campo Grande, no
Rio de Janeiro. A turma jogava dominó, sinuca ou ficava apenas no balcão
bebericando e jogando um quilo de conversa fora. Num desses dias, o papo virou
gastronômico, o que cada um gostava mais de comer, além do churrasco e de
qualquer comidinha do tipo 0800. Rolou de rabada, mocotó, siri, moqueca
capixaba, até angu à baiana. Tinha de tudo para todos os gostos. A cerveja e a
pinga correndo soltos. Até que em dado momento, Tião, já aposentado da RFFSA,
lembrou-se da infância e dos frangos e galinhas caipiras que sua mão e fazia
aos finais de semana de aniversários na família. A boca encheu-se d’água, e os
olhos de Tião ficaram marejados de saudades daquele tempo. Ele reclamou que os
frangos branquelos de supermercados nada tinham a ver com aquelas gordas
galinhas, suculentas, de coxas grossas, da sua infância. A riqueza de detalhes
que Tião trouxe para o papo, de como a mãezinha dele matava, depenava, colhia o
sangue para o molho pardo, deixou o Carlinho sem jeito, com aquelas coxas de
frango cheias de catchup, na vitrine. Passado mais uma rodada de cerveja e da
pinga da casa, que o Carlinho jurava que não era pinga batizada, o papo mudou
para o futebol e ganhou outro rumo. Já noite alta, passava pouco das vinte e
duas horas, o Carlinho deu sinais de que queria fechar a birosca, cansado e já
preocupado com a segurança do bairro. A galera foi levantando e, cada um foi
tomando seu rumo. Quem tinha uma “merreca” no bolso tratou de quitar sua parte,
quem não tinha, e não eram poucos, penduraram mais uma no prego da birosca, e
foram saindo, cada qual para seu lar. Manhã seguinte, o Tião levantou-se cedo
para comprar o jornal O Dia, para ver a colocação do seu Botafogo na tabela do
Brasileirão, e sobre os próximos jogos. Ia tranquilo pela ruazinha,
despreocupado, quando na outra calçada, em sentido contrário, vinha de lá o
Bira, com um saco de farinha de trigo nas costas e, de relance o Tião percebeu
que algo se movia lá dentro do saco. Para sua surpresa, o Bira atravessou a rua
na sua direção, parou, cumprimentou o Tião com um saudoso e sonoro bom dia, e foi
logo dizendo:
- Irmão, isso é para você, ia levar agora mesmo na sua casa. Só te
peço uma coisa, não comenta com ninguém que arranjei uma penosa para você. Sabe
como é, depois aparece um montão de gente querendo moleza. Aproveita, mata a
saudade das galinhas que sua mãe fazia. Fiquei pra lá de comovido com a sua
história, mas boca fechada.
O Bira passou o saco de farinha com a penosa dentro, para as mãos do
Tião, não sem antes recomendar novamente: Bico fechado, e mete o pé.
Tião fez uma meia volta e partiu direto para casa, não sem antes
agradecer emocionado o Bira, que balançou a mão como se dissesse: deixa pra lá.
Assim que Tião entrou em casa, a mulher dele já foi logo falando: - Ué, já
voltou? Tu nunca volta antes das dez. O que que tem nesse saco? Sem demora o
Tião colocou o dedo indicador na boca e fez o sinal de bico calado. A mulher
dele estranhou, mas seguiu o Tião até a cozinha e, quando abriram o saco de
farinha, como por um milagre dos céus, eis que lá estava uma gorda galinha
branca, toda ressabiada, vivinha e pronta para o abate. A mulher de Tião
colocou as duas mãos na cintura e falou: - Ô Tião, onde você arrumou essa
galinha, homem? Tião disse que foi um presente. Presente de um amigo, o Bira,
lá da turma da Birosca do Carlinho. Presente? Tu não tá de aniversário. Que
história é essa? Tião, sem demora advertiu a mulher para ficar de bico calado,
que foi recomendação do Bira, para a turma não ficar pedindo nada pra ele. Tudo
bem, pensou a mulher, mesmo assim meio desconfiada. E foram para os trabalhos,
matar a gorda galinha do presente. Para não alertar os vizinhos o Tião, mesmo
com pena da penosa, deu-lhe uma torcida esperta no pescoço da cuja, e a pobre
ave passou desta para aquela situação de abatida. Depois de escaldada e
depenada, o resto foi moleza, temperos, fogão e esperar a hora de saborear a
gordinha de penas, lembrando-se da mãezinha e da infância, com os olhos
marejados, mas um sorriso de orelha a orelha. A vontade deles era tanta, que a
metade dela foi no almoço, o restante na janta, com direito de roer os pés da
penosa. Acabado o jantar, como sempre fazia, Tião foi se saindo para encontrar
a turma lá na Birosca do Carlinho. Foi chegando perto da turma e percebendo que
havia um clima sinistro no ar. Papo baixinho, um olhando para o outro e, Tião
já ficou ressabiado. – Ué, que que houve por aqui galera, alguém morreu? –
perguntou o Tião. Morreu sim, disse o Carlinho colocando a cerveja do Tião. –
Quem morreu, gente? - insistiu o Tião. Carlinhos continuou: Bem, acho que
morreu, não temos certeza, mas a galinha de raça do Paulão, aquele da estiva,
que cria umas galinhas lá no quintal dele, disse que desapareceu, não deixou
nem uma pena para trás. Ele reclamou que era sua melhor ave. Tinham outras
galinhas, mas sumiu exatamente a melhor delas. Ele acha que alguém passou a mão
leve por lá, mas disse que vai descobrir, custe o que custar. Tião engoliu
seco, tossiu, passou a mão disfarçada na boca, para ver se não tinha nenhum
vestígio da penosa e, num gole só tomou o copo todo da cerva. O Carlinho
estranhou o gesto e comentou: - Cara, tu tava seco, é? Se controlando o Tião
rebateu: - Muito chato uma parada dessa. Vai ver a penosa se mandou com algum
galo. Ou sei lá, um gambá pegou ela de jeito, ou então um gavião faminto, sabe
como é, a coisa não tá boa nem para o mundo animal. Carlinho coçou o queixo,
como se pensasse nas ideias do Tião: - É gamba pode ser. Mas cadê as penas? Não
tinha pena nenhuma no galinheiro. A galinha se entregou sem brigar? Estranho.
Fugir com o galo? O galo está lá, triste e nem cantou hoje de manhã. E gavião à
noite, nunca ouvi falar. Tião sentiu que suas ideias não estavam colando muito
bem, e arrematou: - Sei lá gente, é apenas uma ideia. De qualquer forma o jogo
de sinuca e o dominó não rolou como sempre. Ficou aquele papo meio sinistro se
isso ou aquilo, o que faria o Paulão se soubesse que alguém da rua tivesse, por
acaso, afanado a galinha dele. Tião sentiu aquele friozinho na espinha, e
deixou de dar ideias, para que ninguém desconfiasse que em sua barriga já
descessem partes daquela ave adorada por outrem. Neste dia o Carlinho nem
precisou dar um toque na turma para fecharem as contas, que ele queria fechar
para assistir o jogo do seu mengão em paz. Todos foram saindo, despedindo-se em
voz baixa, como se saíssem de um velório mesmo. Tião chegou em casa, chamou a
mulher no quarto, e falou baixo: - Mulher, arruma as malas, amanhã de manhã
vamos passar uns dias lá na casa de sua mãe em Madureira. A mulher de Tião
levou um susto. – Ué, que foi viu assombração? Você não gosta da mamãe, nem
gosta de ir lá, quanto mais passar uns dias por lá. O que que houve, conta essa
história? – Não houve nada, mulher. É crise de consciência, pensei bem hoje,
você fica sozinha, com saudades de sua mãe e a gente quase não vai lá, e a
culpa é minha. Não discuta, é para o bem da família, ficamos lá uns cinco dias,
e pronto, ela não vai reclamar mais que a gente não vai lá. A mulher de Tião
engoliu, mais ou menos a história, e abriu um sorrisão daqueles, que bom passar
uns dias na casa da mamãe. Cinco e meia da manhã, nem o sol tinha acordado, e o
Tião já tirava a Vemaguete 67 da garagem, para se mandar para a casa da sogra,
torcendo para ninguém vê-lo saindo, muito menos o Paulão, o dono da penosa.
12 set. 2019.
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